Não houve esporte que mais caracterizou a Idade Média do que os torneios e as justas. Jogos simulando combates reais, extremamente populares, representaram um traço de união distintivo da nobreza, e auxiliaram a sua coesão como grupo que buscava afirmar seus privilégios e diferenças em relação às demais classes sociais do seu tempo.
Para além da óbvia função lúdica e de entretenimento, serviam também para que os cavaleiros exercitassem a arte da guerra.
Torneio Medieval
A sua origem pode ser encontrada na prática equestre da Roma antiga, quando a noção de honra cavalheiresca se começou a formar entre os “Equites”, a classe guerreira aristocrática romana que formava a Ordem Equestre.
Poderá haver alguma continuidade entre o torneio medieval e a “Hippika Gymnasia”, treino de combate da cavalaria romana, mas dada a escassez de fontes primárias essa relação é difícil de estabelecer. Do que se sabe, estes tipos de jogos faziam parte do treino essencial dos cavaleiros já desde o século IX, na época do Império Carolíngio, com registro de torneio medieval em Worms nos anos de 843 e 862. Nestes jogos, o confronto seguia o tipo de um combate geral entre todos os participantes, sem grandes regras e onde o caos se instalava, como um gigantesco “mêleé”.
A documentação dos séculos seguintes é igualmente escassa, mas fica claro que a evolução do torneio medieval surgiu nos séculos X e XI, sendo reconhecida pelas próprias fontes coevas: um cronista de Tours do final do século XII atribui a “invenção” das regras a um nobre Angevino, Geoffroi de Preulli, que terá supostamente falecido em 1066.
Por sua vez, os cronistas alemães Georg Rüxner (“Thurnierbuch”, 1530) e Paulus Hector Mair (“De Arte Athletica”, 1544) dataram o primeiro torneio medieval nos anos de 919 e 936, respectivamente. Quanto à primeira aparição do nome “torneio medieval”, esta surge na carta de foral do Conde Balduíno III de Hainault à cidade de Valenciennes, no ano de 1114, referindo os esportes de “javelin, tournoiamont e outros similares” para os festejos da dita emissão de foral.
Diferença entre Torneio medieval e Justa:
Inicialmente, o torneio medieval denominava um tipo muito específico de combate e era disputado por equipes de vários cavaleiros que se encontravam como se estivessem num campo aberto de batalha ou numa mêlée (luta corpo-a-corpo). Muito comuns nos século XII e XIII, esta era a mais perigosa forma de desafio e os guerreiros combatiam com extrema violência, com numerosas mortes entre os participantes.
Nas demais vezes este tipo de luta mais não era de que uma verdadeira batalha campal e podia decidir uma disputa política entre reinos como sucedeu no campo de Arcos de Valdevez em Portugal, no ano de 1140, quando duas equipes (quase exércitos completos) representando os reis Afonso Henriques e o seu primo Alfonso VII de Leão e Castela se enfrentaram à maneira de torneio medieval “todos contra todos” acabando por degenerar numa verdadeira batalha cuja vitória portuguesa foi reconhecida como sendo igual a um combate regular.
Como consequência, esta prática de torneio medieval foi se tornando cada vez mais rara com o passar do tempo, e assim como o seu sentido técnico ficava mais esbatido a palavra para ele também era aplicada de maneira mais ampla para todas as formas de combate cavalheiresco.
No início do século XIII surgiu uma evolução fundamental, quando em substituição dos embates caóticos se seguiu um tipo de confronto singular, cavaleiro contra cavaleiro, chamada “Justa”, com um conjunto de regras bem definidas.
As justas acabaram por ser vistas não só como um espetáculo em si mesmas mas também oportunidades para resolver pendengas entre nobres inimigos e, em alguns casos, uma forma de recuperar a honra ferida por alguma ofensa.
No século XIV estes embates passaram então a ser realizados em feiras ou nas ruas principais de grandes cidades, atraindo multidões de espectadores e séquitos de nobres acompanhados por centenas de familiares, pajens, tratadores de cavalos, escudeiros, armeiros e prostitutas.
Nessas ocasiões, os mercados das cidades que sediavam as justas realizavam grandes negócios, alimentando, abastecendo e hospedando os visitantes, além de movimentar dinheiro em apostas de aristocratas atraídos pela ocasião.
“Quebrou…Ganhou”. “Feriu o cavalo? ESTÁ FORA do torneio medieval!”
A própria organização das competições se tornou mais diversificada: além das provas equestres havia combate a pé com lança, espada, machado, bola de ferro ou punhal e diversos tipos de escudo.
As lutas (torneio medieval) por equipes ao estilo “mêleé” continuaram, estas começavam a cavalo mas depressa os cavaleiros desmontavam e a luta prosseguia a pé. Uma equipe ganhava quando o seu (ou seus) últimos guerreiros se mantinham de pé, mas agora os juízes de campo se certificavam que estas não atingiam um certo nível de violência, atirando os seus bastões para o chão bem no meio do combate e gritando: “cessai!”.
Os juízes passaram a ter também a última palavra na contagem da pontuação e na desclassificação de um cavaleiro. Para provar que o adversário caiu pelo impacto do golpe e não pela perda de equilíbrio a lança do vencedor tinha que ser quebrada na zona do arnês (peito) ou na cabeça no momento do choque.
Quanto mais perto do punho fosse quebrada, mais pontos ganhava. Se o elmo do oponente voasse com o impacto da lança na zona da cara também se ganhavam pontos, mas menos do que se esta fosse quebrada. Se a lança ferisse o cavalo do adversário nalgum lugar desprotegido o responsável pelo golpe era desclassificado imediatamente, e também podia perder pontos simplesmente por atingir a sela do adversário. Era igualmente punido se o seu cavalo se esquivasse da luta ou se atingisse por acidente a cerca no meio da arena que o separava do oponente.
Adarga de paz ou de guerra:
Uma curiosidade interessante das justas eram os desafios que os cavaleiros lançavam para os outros participantes em estilo jocoso, como o Duque de Orleans envergou no torneio medieval do campo de Santa Catarina em Paris, no ano de 1389, nas celebrações do casamento do rei Carlos VI de França com Isabel da Baviera: uma heráldica com desenho de um nó bem atado e o mote: “Ofereço o desafio”.
O escudeiro do Duque pendurou então duas adargas (escudos pequenos onde a lança se segurava durante o embate): uma ricamente decorada a ouro, a adarga de paz, e outra muito simples, sem decoração e feita de ferro reforçado, a adarga de guerra.
O oponente mandava então o seu escudeiro bater com a ponta da lança em qual escudo pretendia. O arauto aclamou de seguida: “Eu, Luís, Duque de Orleans aqui declaro e testemunho perante todos, que quem bater na minha adarga de paz me dará honra, e quem bater na minha adarga de guerra me dará prazer!” (Crónicas de Froissart, livro III, Capítulo 65).
Outro exemplo é-nos contado por Jean le Févre, um arauto francês do século XV, acerca de uma justa oferecida por Álvaro Coutinho, um cavaleiro português, durante um torneio medieval em Basileia, na Suíça, em 1415. Pouco depois do seu escudeiro pendurar as duas adargas junto à entrada da tenda surge o jovem escudeiro de um cavaleiro Polaco que declara: “o meu senhor deseja partilhar a honra do dia com vós”, batendo com a lança na adarga de paz do cavaleiro luso.
Jean le Févre comentou como era “tão maravilhosa coisa de ver dois tão grandes cavaleiros em valentia e honra, já experimentados na arte da guerra – (Álvaro Coutinho esteve presente na tomada de Ceuta e o seu oponente Polaco provavelmente havia combatido na batalha de Grunwald) – e vindos de tão longínquos reinos quebrarem lanças por sua honra e estado”. De referir que a justa entre os dois terminou num empate, com cada um quebrando as suas lanças à vez e ambos levantando a lança na terceira passagem, sinal de que ofereciam um ao outro a honra do dia.
Uma invenção portuguesa no mundo da Justa?:
Durante o século XIV surgiram as cercas de madeira que corriam ao longo do campo separando os cavaleiros cada um em sua faixa durante a cavalgada e o embate das lanças, chamadas liças (“tilt” em inglês ou “la toille” em francês) uma inovação que rompeu com o hábito anterior em que os dois cavaleiros investiam na direcção um do outro livremente, sem obstáculos no campo.
Segundo alguns registos e afirmações de cronistas da época corroboradas por autores modernos, essa liça teria sido inventada em Portugal. Quando? Não se sabe, apenas podemos sustentar esta possibilidade através dos relatos coevos, como os do dito Jean Le Févre ou os do Senhor de Roubaix, durante as celebrações de casamento da infanta Isabel com Filipe, o Bom, Duque da Borgonha, em Arras corria o ano de 1430.
Ele providencia um relato vívido das justas à maneira portuguesa: (“joustes à l’usage de Portingal, une seulle liche à travers, de fort marine, haulte jusque aux espaulles des chevaulx, et furent tendues de drap blue tout au long (…) l’un d’un costé et l’autre de l’autre”). Uma única liça atravessada, de madeira forte, de altura igual às espaldas dos cavalos, coberta de tecido azul (em que os cavaleiros) estão um de um lado e o outro do outro”.
Esta possibilidade é corroborada por outra fonte, o cronista castelhano Gutierrez Diáz de Gómez escreveu no início do século XV: “loz franzeses justan por otra guisa que non façen en España; justan sin tela, a manera de guerra”. (os franceses justam por outra maneira que não fazem em Espanha, pois justam sem tela (liça), à maneira de guerra). PS: A designação “Espanha” aqui abarca toda a Península Ibérica e não apenas Castela.
Os autores modernos Barber e Baker sugerem Portugal como o local onde surgiu a liça no seu livro “Tournaments Jousts and Chivalry in Middle Age Europe” (páginas 194-5); bem como Clephan em “The Medieval Tournament”, (página 102); François Neste em “Tournois, joustes, pas d’armes dans la ville de Flandre à la fin du Moyen Age” (página 83); Dillon em “Tilting in the Tudor times” (página 297) e Contamine em “Les tournois en France à la fin du Moyen Age” (página 444).
Igreja contra o torneio medieval:
Devido à sua violência, soberba e fanfarronice de que os seus participantes se gabavam, o Clero tratou de estancar esse tipo de exercícios militares em tempos de paz, proibindo o torneio medieval, negando a sepultura eclesiástica aos que neles morriam.
Os Papas Eugénio II (827), Inocêncio II (1140), Eugénio III no Concílio de Latrão em 1170, Inocêncio IV proibiram os torneios, mas não foram abolições absolutas. Em 1279 Nicolau III excomungou todos os participantes e espectadores de um torneio medieval em solo francês. Dentro da Igreja houve unanimidade sobre esse tema já que houve papas como Urbano V que participou como espectador (O rei João II de França dirigindo-se a Avignon lhe ofereceu um torneio medieval depois de ter sido libertado do cativeiro em Londres após a batalha de Poitiers).
Historiador e bispo de Acre, depois cardeal de Tusculum, Jacques de Vitry (c.1170-1240) foi um pregador de grande reputação no ocidente medieval na primeira metade do século XIII. Vitry tem três sermões dirigidos aos cavaleiros e “potentes” (termo que designava os superiores da hierarquia social, em oposição aos pobres). N
um deles, o bispo se vale de uma passagem do Evangelho de Lucas (3,14) para tratar dos torneios e criticá-los asperamente. Nessa passagem – que, de resto, não se encontra nos outros evangelhos sinóticos – há uma clara conclamação à caridade e à resignação: para receberem Cristo, os “milites” não deveriam desejar mais do que tinham, não poderiam causar sofrimento aos outros, muito menos cometer perjúrio.
Jacques de Vitry aproveita a passagem de Lucas para contar uma história que se recorda ter ocorrido consigo. Um dia, ele conversava com um “devoto cavaleiro”, mas que gostava de frequentar o torneio medieval, além de convidar outros cavaleiros através de arautos e histriões (farsantes, palhaços e bobos). O cavaleiro pensava que “essa espécie de jogo ou exercício” não fosse pecado. Então o bispo tentou convencê-lo a não participar mais desses eventos, pois ali os sete pecados capitais tinham espaço para o mal.
A cavalaria secular e profana que se exibia no torneio medieval, segundo Jacques de Vitry, era composta de homens incrédulos, hereges, impiedosos, presunçosos, jactanciosos, falastrões, assassinos, invejosos, ladrões e adúlteros! Esses glutões insaciáveis são a melhor prova que “a derrota (moral) da humanidade chega quando o poder se corrompe” – e aqui o bispo de Acre cita Horácio (Epístolas, I,2,14), poeta romano (65–8 a.C.), e mostra sua paixão pela poesia clássica, aliada aos ensinamentos éticos cristãos.
Citando Mateus, Vitry maldiz os cavaleiros que fazem o sangue jorrar, já que eles serão “afogados nas profundezas do mar” (Mt 18,6). Após sentenciar os “milites” mortos no torneio medieval à verdade do julgamento final, Jacques de Vitry nos informa que seu ouvinte, o piedoso, porém altivo cavaleiro participante do torneio medieval – certamente assustado e temeroso com o futuro de sua alma “ouviu as palavras e reconheceu abertamente a verdade”, e passou a odiar aqueles detestáveis encontros profanos.
O bispo então conclui: “Muitos pecam por ignorância e, se ouvissem e buscassem cuidadosamente a verdade, nunca mais pecariam, tal como aqueles soldados que interrogavam cuidadosamente João Batista: ‘E nós, que devemos fazer?’. E ele respondeu-lhes que não deviam usar de violência em ninguém, nem caluniar ninguém com acusações falsas ou fraudulentas, e que deviam contentar-se com os seus salários que, segundo o testemunho de Santo Agostinho, foram instituídos para os soldados a fim de evitar que, procurando com que viver, se apossassem por meios violentos de bens alheios. (Sermão 52, em LE GOFF, 1994: 278).
Seja como for, a constância do discurso hostil da Igreja em relação ao torneio medieval contribuiu enormemente para o gradativo desenvolvimento do processo civilizador e a domesticação da belicosidade dos “bellatores” (Costa, 2001).
Fontes e Créditos: Texto Torneio medieval de Pedro Alves, utilizado (adaptado para o blog) com a gentileza da autorização da página no Facebook Repensando a Idade Média (facebook.com/RepensandoMedievo).
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